Raquel Saraiva*
Devorar um pote de sorvete pode ser culpa da pandemia. Isso é o que mostra o relatório “Epidemia da COVID-19 no Brasil: potencial impacto na saúde mental”, desenvolvido por pesquisadores da Rede CoVida e liderado por Daiane Machado. Eles destacam que o alerta para saúde mental vale não só durante o enfrentamento da Covid-19, já que distúrbios psicológicos podem perdurar e gerar problemas que excedem as consequências da própria epidemia.
Segundo os pesquisadores, as mudanças na rotina doméstica e de trabalho impulsionam o desenvolvimento de estratégias para minimizar a angústia e o estresse. Dentre elas, fumar, usar álcool e outras drogas e até ter fome emocional, que se manifesta no consumo exagerado de alimentos doces e gordurosos. Deixar de ir a feiras e supermercados para comprar alimentos frescos e recorrer ao delivery também tende a aumentar o consumo de alimentos que não são saudáveis.
E não só a saúde mental influencia a alimentação, mas o contrário também, sobretudo durante a pandemia. Alterações na dieta, com redução do consumo de vitaminas, minerais e ómega 3 podem piorar a qualidade de vida e a saúde mental das pessoas. Por ter produção dependente da exposição ao sol, a vitamina D, em especial, pode se tornar ausente não só por uma alimentação inadequada. Pessoas que vivem em casas com estrutura inadequada ou que têm mobilidade reduzida que dificulta o acesso à luz do sol, como idosos e pessoas com limitações físicas, podem sofrer os impactos emocionais da falta de vitamina D.
No Brasil, onde a falta de alimentos e a desnutrição ainda são um problema eminente de saúde pública, a dificuldade no acesso à alimentação é fator ainda mais agravante nesse cenário. Os pesquisadores alertam que, por si só, o medo de passar fome já causa estresse na saúde mental. Com os efeitos do distanciamento social, milhares de famílias pobres sofrem com a precarização do acesso e da geração de renda, o que pode aumentar a curva de desnutrição e fome no país com o agravamento da pandemia.
População
Lidar com uma nova doença sem saber como tratá-la de forma eficiente: o estresse que profissionais de enfermagem e médicos vêm enfrentando na pandemia causou transtornos mentais em 62% deles. Dentre 994 funcionários médicos e de enfermagem entrevistados no estudo, 34,4% apresentaram transtornos mentais considerados leves, 22,4% transtornos moderados e 6,2% apresentaram transtornos graves, logo após o pico da epidemia. O estresse experimentado pelos profissionais de saúde, que já foi abordado no Boletim CoVida #5, pode desencadear estresse pós-traumático, ansiedade e depressão.
Maioria entre profissionais de saúde na linha de frente do combate à Covid-19, as mulheres apresentaram maiores níveis de angústia que os homens. A maior vulnerabilidade econômica e o fato da maioria exercer o papel de cuidadora em casa também contribuem para que a ocorrência e agravamento de transtornos depressivos e de ansiedade seja maior entre elas. Entre as gestantes, transtornos de humor são comuns, provocados pelo medo do contágio ao acessar serviços de pré-natal. A redução da disponibilidade de profissionais para atendê-las também durante o parto e puerpério por conta das ações de combate ao novo coronavírus gera ainda mais insegurança.
Na população em geral, 19,1% apresenta ansiedade grave ou muito grave, segundo um estudo realizado no Irã com 10.754 indivíduos. Além das mulheres, estão entre os mais afetados os idosos, jovens com idade entre 21 e 40 anos que acompanham as notícias relacionadas ao coronavírus e pessoas que com um parente ou amigo que teve a Covid-19. Além do óbito inesperado, familiares de mortos pela doença podem ficar traumatizados por não terem contato com o paciente nos últimos dias de vida e ter problemas para organizar o funeral ou mesmo por não poder ir ao enterro, devido às imposições sanitárias contra o novo coronavírus.
Recomendações
Algumas práticas feitas em casa podem ajudar a promover a saúde mental em meio à pandemia e distanciamento social. Dentre elas, garantir a continuidade do uso de medicação, tentar manter perspectiva realista da situação, limitar o acesso às notícias e mídias sociais, manter contato por telefone ou celular com pessoas com quem goste de conversar, obter apoio profissional online se sentir necessidade, manter uma rotina de exercícios e de sono, manter uma dieta saudável e equilibrada, evitando o excesso de álcool, e tentar praticar técnicas de relaxamento, como exercícios respiratórios e meditação.
No caso de pacientes com necessidade de acompanhamento e seus familiares, os pesquisadores destacam que o acolhimento especializado é fundamental para aliviar o sofrimento. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) oferece atendimento gratuito e pode ajudar em caso de crise do indivíduo. É importante também observar se há aprofundamento das dificuldades na vida familiar, social ou no trabalho, risco de complicações, em especial suicídio, além de piora de problemas coexistentes como alcoolismo ou outras dependências, depressão, psicose e transtorno de estresse pós-traumático para fazer encaminhamento para a RAPS. Os pesquisadores destacam que deve ser dada atenção a padrões de sofrimento prolongado que se manifestam como tristeza, medo generalizado e ansiedade expressos corporalmente, sintomas que podem desencadear uma disfunção a médio ou longo prazo, caso não seja realizada uma intervenção qualificada.
O trabalho mostra que a implementação de medidas de distanciamento social pode aumentar as perturbações mentais e a sensação de solidão, depressão, incerteza financeira, medo, ansiedade e causar impacto na dinâmica das famílias. Por isso, ressaltam os pesquisadores, implementar um plano nacional de saúde mental pode beneficiar a população, em especial os grupos mais vulneráveis, quando o distanciamento social é necessário para enfraquecer a pandemia. Outras recomendações podem ser encontradas no relatório.
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*Raquel Saraiva – graduanda em Comunicação Social (UFBA), bióloga e mestra em Fisiologia (UFBA), editora do site de divulgação científica Bate-papo Com Netuno. Colabora voluntariamente para a Rede CoVida.